segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O Museu, as fake news e a pós-modernidade

Compartilho aqui no Blog artigo do pesquisador do Museu Nacional, Marcos Raposo, o qual foi veiculado no Blog Ciência & Matemática do Jornal O Globo.
Vale a pena a leitura e a reflexão!
Podemos analisar cada fato histórico em diferentes perspectivas. Uma delas é a perspectiva pontual, de causalidade imediata. Outra é a perspectiva histórica, que apresenta, na verdade, vários graus de aproximação.
O incêndio no Museu, há quase três meses agora, foi causado, em um nível mais imediato, pelas primeiras fagulhas de fogo. Olhando-se em uma perspectiva um pouco mais contextualizada, entretanto, vemos o descaso histórico de autoridades como um agente tão nocivo quanto o próprio fogo. Da mesma forma, no caso das famosas “fake news” podemos culpar a primeira pessoa a elaborar a tal notícia falsa ou apontar, em uma perspectiva mais ampla, como responsáveis, as redes sociais e sua total falta de filtros. As trágicas consequências de ambos os processos para nossa cultura e democracia são bastante bem conhecidas e não serão discutidas neste texto.
Aqui nós exploraremos um movimento histórico muito mais amplo, temporalmente mal delimitado e definido, mas que se impõe como potente pano de fundo responsável por inúmeras tendências que vivem deixando os observadores do mundo em que vivemos atônitos. Falamos aqui da pós-modernidade ou da condição pós-moderna como é comumente referida.
Ela, a pós-modernidade, pode ser entendida, simultaneamente e paradoxalmente, como o mais belo fruto do modernismo e também como uma aguda consequência de seu maior fracasso. Ela é uma conclusão inevitável dos avanços científicos e filosóficos da modernidade e, portanto, boa, mas é também o desalento de quem, não atento às advertências de Platão, conferiu ao nosso conhecimento um poder maior do que ele de fato poderia possuir.
O modernismo, no campo dos saberes, foi marcado pelo positivismo lógico que tem no inglês John Locke (1632-1704) um de seus maiores ícones. Nessa época, que configura um tipo de continuação do Iluminismo, havia uma enorme euforia e expectativa com a explosão do conhecimento. O saber prometia nos explicar absolutamente tudo: a nossa natureza como animais; o surgimento das galáxias, estrelas e, consequentemente, da terra; a relação entre diferentes compostos; e a própria existência de leis universais.
Mais que isso, como aponta Harvey (1989) em sua obra Condição Pós-moderna, nesse período os “escritores estavam possuídos da extravagante expectativa de que as artes e as ciências iam promover não somente o controle das forças naturais como também a compreensão do mundo e do “eu”, o progresso moral, a justiça das instituições e até a felicidade dos seres humanos”…
Entretanto, ainda nas palavras desse autor, “o século vinte, com seus campos de concentração e esquadrões da morte, seu militarismo e duas guerras mundiais, sua ameaça de aniquilação nuclear e sua experiência de Hiroshima e Nagasaki certamente deitou por terra esse otimismo.” Como se isso não bastasse, a modernidade culminou com a destruição da crença em um saber total, completo, assim como resultou em uma ciência forçadamente tão aberta que deixou de se autoproclamar como totalmente distinguível de outras formas de saber. Esse processo, denunciado inicialmente em Nietzsche, um contumaz crítico da racionalização exagerada que dominava toda a filosofia ocidental, cristalizou-se nas obras de filósofos como Gaston Bachelard, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, em diferentes perspectivas que tinham em comum o diagnóstico de uma ciência fluida, de verdades transitórias e cheias de influências sociais, culturais e históricas. Mesmo o mais influente filósofo das ciências, Karl Popper, em sua astuta tentativa de trazer a razão de volta à ciência pelo falseamento, denunciava em suas entrelinhas a impossível tarefa de distinguir objetivamente dentre as diferentes manifestações socioculturais do saber, aquelas que mereceriam a alcunha de científicas.
A esse mundo que sucedeu o moderno, área por área, descoberta a descoberta, pessoa a pessoa, tempo a tempo, foi conferida a alcunha de pós-modernidade. Suas características mais marcantes, no que diz respeito à ciência, são a transitoriedade, sua fluidez, a valorização da perspectiva, a pluralidade das suas abordagens e a derrocada da autoridade.
A constante admissão da possibilidade do erro e do fato que as verdades nesse novo período da história seriam apenas hipóteses que tenderiam à substituição completa ou parcial ao longo do tempo estimulou um vigoroso crescimento do saber científico. Por outro lado, a noção de que qualquer modelo explicativo ou teoria, como a teoria da relatividade ou a mecânica quântica, embora representativas da realidade, seriam meras representações intelectuais, fez com que diversas abordagens pudessem conviver em diferentes níveis na ciência. Afinal, elas não estariam no mundo lá fora como verdades a serem desvendadas, mas em nossas cabeças, como ferramentas úteis à compreensão dessa realidade. Assim, o progresso do conhecimento passou a se dar como a escalada de um pico feita simultaneamente por diversos escaladores. Cada ponto de apoio (fato) é cuidadosamente escolhido de acordo com a firmeza que proporcionava ao escalador, não sendo obrigatório colocar as mãos e pés nos mesmos locais nem trilhar o mesmo caminho (hipótese) dos demais até o topo (teoria).
Essa inusitada humildade acadêmica, a consciência constante da possibilidade do erro ou, mais precisamente, da existência de uma hipótese alternativa mais explicativa proporcionou um quadro de crescimento de nosso entendimento do mundo. O progresso científico decorrente dessa abordagem é inegável e se impõe hoje como uma montanha diante de nossos olhos. É muito interessante observar ainda alguns céticos do progresso científico escreverem seus textos em laptops de alta tecnologia, fruto de uma gama imensa de estudos em ciência básica e aplicada. O desenvolvimento da biologia, da física, da astronomia, da química e de outras áreas da ciência é tão espantoso que começa já a transcender a nossa capacidade individual de atualização e demanda um crescente processo de hiperespecialização de pesquisadores.
Para a sociedade como um todo, entretanto, essa condição cheia de verdades admitidamente efêmeras e fluidas não foi bem recebida ou compreendida. Segundo Harvey (1989), por exemplo, mesmo renomados escritores modernistas, como Goethe, Marx, Bauldelaire e Dostoiévski se debateram ao encarar um mundo onde, como diria Bernan (1982), “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. O efeito colateral desse estranhamento e falta de compreensão foi a gradual subvalorização do fato como verdade possível, a relativização vazia do conhecimento e o próprio ceticismo que por vezes se aproximava de um total niilismo, em um processo que fez o filósofo Zigmunt Bauman (1925-2017) preferir chamar a pós-modernidade de “modernidade líquida”.
A manifestação máxima desse processo se dá na, ora inocente, ora oportunista, negação de fatos muito bem evidenciados e de teorias robustas, resultando em aberrações sociais como a disseminação da crença de que a terra seja plana, a negação do Holocausto, do comércio negreiro, do aquecimento global ou mesmo da teoria da evolução. Em última instância, se fatos históricos e teorias tão corroborados são descartados podemos imaginar o que se passaria com os referenciais morais e humanísticos cuja construção é, naturalmente, tão mais delicada. Nesse contexto, tanto a condescendência com as fake news quanto o incêndio do Museu Nacional podem ser entendidos como efeitos colaterais perversos da principal característica de uma condição pós-moderna mal compreendida, o total desprezo pelos fatos. Você já parou para pensar no que se esconde por trás da desvalorização e seguidos ataques a professores? Pois bem…
Os progressos na ciência e em nossa relação com o mundo são inegáveis, como já defendido acima. A nossa ciência contemporânea e sua filosofia entendem, entretanto, que por mais robustas e próximas da realidade que suas hipóteses e teorias estejam, elas sempre poderão ser aprimoradas ou mesmo substituídas por modelos mais explicativos. Isso é um preceito básico totalmente necessário ao seu aprimoramento e é exatamente seu diferencial em relação às estruturas de saber dogmáticas ou religiosas. Longe de ser um defeito, esse é o grande poder por trás da ciência.
Encontrar estratégias para contar essa complicada história e reconectar as pessoas com as diferentes modalidades do saber é hoje, sem dúvida, o grande desafio de professores e cientistas. Somente assim seremos capazes de minar as raízes de processos tão perniciosos quanto a disseminação de notícias falsas, a crescente desvalorização de nosso patrimônio cultural e a própria derrocada dos valores humanísticos construídos cuidadosamente por filósofos ao longo dos últimos dois mil anos de nossa história.

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